“Liberdade,
Igualdade e Fraternidade: a complexa equação dos ideais da sociedade
industrial. Uma análise a partir de Simmel e do filme Daens – Um grito de
Justiça.” ··.
Ana Priscilla Martins Rocha
“Liberté, Egalité e Fraternité”, famosa frase muito utilizada em meados da Revolução Francesa, que representa toda a ideologia da sociedade livre, igualitária e fraternal. A Revolução Industrial trouxe mudanças significativas nas estruturas socioculturais, políticas, econômicas e religiosas em toda a Europa, que se apoiavam na liberdade e igualdade do homem como subterfúgio de suas próprias ambições políticas e econômicas. Embora entendamos que a frase não se sustenta, o importante é a compreensão de todos os elementos e fenômenos que, dados seus significados, apontam para uma sociedade falha na formação e consolidação de sua estrutura e modo de ver o homem e o mundo. A relação da liberdade que se apoia na igualdade para se justificar é uma faca de dois gumes, visto que essa concepção permanece em uma relação de dicotomia. A igualdade não se sustenta, pois apesar de termos certas necessidades iguais (de comer, beber, dormir, de comunicação) possuímos vontades e motivações diferentes, apoiadas em instintos que são comuns a todos, porém que se utilizam e manifestam-se de formas diferentes, criando uma desigualdade. Para realizar essa reflexão de uma maneira mais sólida e significativa, utilizamos como método de investigação o filme Daens – Um grito de Justiça e a leitura do texto Indivíduo, liberdade e igualdade, de Simmel, para complementarmos a observação de todos os fenômenos expostos.
O filme se passa nos anos de 1890, norte da Bélgica, um dos cenários da
Revolução Industrial Européia, na cidade de Aalst. O enredo é desenvolvido a
partir da vida dos trabalhadores de uma fábrica de tecidos, onde homens,
mulheres e crianças vivenciavam um estado de plena miséria por conta dos baixos
salários que recebiam. A situação caótica da população é algo muito relevante
no filme: há muita pobreza, muita submissão e pouca esperança. A vida daquela
sociedade passa a ter uma nova direção com a chegada do padre Daens, que vem
morar com o irmão jornalista, aproveitando o jornal da cidade filiado ao
partido católico para expor seus ideais e ambições. Ao escrever artigos contra
a política e o sistema de trabalho e exploração locais da época, Daens desperta
na classe trabalhadora um espírito de luta e coragem pela conquista de seus direitos.
Com o Capitalismo, as relações de trabalho modificaram várias estruturas
da sociedade da época, provocando um aumento significativo da população vinda
para as cidades em busca de novas condições de sobrevivência para suas
famílias. O filme retrata com fidelidade esse aumento populacional, mostrando a
realidade daquelas famílias e a intensa desigualdade social onde, muitas vezes,
as famílias não possuíam os mínimos recursos para sobreviverem. O Feudalismo
era uma forma de trabalho mais comunitária, uma vez que as pessoas tinham que
trabalhar em grupos para garantirem a produção econômica dos senhores feudais.
Esses grupos tiveram um caráter de unidades niveladoras, fazendo camuflar os
traços individuais de cada sujeito e reprimindo a sua singularidade. A nova
forma de trabalho - a propriedade privada -, que se apoia na liberdade
econômica, faz emergir uma nova forma do homem se impor no mundo. Agora apoiado
num instinto de poder para garantir sua própria sobrevivência nessa nova forma
de organização social, passa a desenvolver um desejo individual de aparecer, a
fim de se diferenciar dos outros homens, desenvolver suas próprias
potencialidades e se distinguir dos demais. Num primeiro momento, o homem era
apenas dono de sua força de trabalho, porém para se inscrever nesta nova forma
de atuar economicamente nas fábricas, o homem desenvolve um senso de individualidade
com as potências que lhe são próprias, e vende essa nova forma de trabalho por
condições desfavoráveis em troca de salários. No filme isso é retratado muito
bem, quando visualizamos mulheres e crianças agora fazendo parte também do meio
de produção industrial, pois a preocupação da classe burguesa era desenvolver
suas empresas para garantir o aumento de seus lucros, e acreditava que as
mulheres e as crianças eram mais suscetíveis a tais atividades, pois a ideia
primordial era a de aproveitar ao máximo a força de trabalho de todos que a
possuíam; e assim que esta força fosse desgastada, haveria um número enorme de
pessoas aguardando este momento de opressão e exploração, uma vez que não
existia alternativa senão submeter-se a tais condições para garantir sua
sobrevivência e de sua família. Outra questão que poderíamos supor é que
mulheres e crianças tinham menos forças para lutarem pelas opressões da classe
burguesa do que os homens. É nesse contexto que emerge a individualidade,
porém, na medida em que esse individualismo se manifesta como uma procura de
distinção, o homem sente a necessidade de criar outro conceito para expressar
essa singularidade sem obter pressões dentro de um sistema hierárquico. É
quando aparece o conceito de liberdade. A própria classe burguesa para
desenvolver suas empresas, ampliar seus mercados consumidores e utilizar-se de
mão-de-obra barata, sustenta-se nesse conceito de liberdade econômica. Enquanto
trabalhadores buscavam essa nova forma de atuarem para garantirem a própria
sobrevivência, os donos das fábricas exploravam ao máximo esse momento sem se
preocuparem com as condições dos mesmos. Uma cena marcante que mostra o
desinteresse da classe burguesa pelas condições de trabalho dos trabalhadores é
a conversa entre o Sr. Daens e o Sr. Woeste, quando este nega a verdade exposta
das crianças que estão morrendo dentro das fábricas.
A liberdade é um aspecto político
criado pelo próprio homem, sendo inclusive o seu ideal. A livre concorrência
sustenta que o homem é livre para fazer suas escolhas e é responsável pelas
condições a que se submete; porém, se o homem é livre, todos teriam que ser
tratados igualmente e com total liberdade e isso acaba criando um paradoxo,
pois já que o homem é livre ele pode muito bem querer ser diferente, mas se é
obrigado a ser igual, sua liberdade é revogada. A liberdade apresenta então
seus conflitos, já que mesmo o homem tomando suas próprias decisões, existem
outros fatores que interferem nessa liberdade (o ambiente, as próprias
instituições, a Igreja etc). Outra questão paradoxal seria: ainda que o homem
seja livre, essa liberdade impede que seus desejos entrem em choque com o
desejo dos outros, pois como a minha liberdade de dirigir embriagado interfere
na liberdade do outro de andar pela rua sem ter sua vida ameaçada? O texto do
Simmel trás esse aspecto a partir do Idealismo de Kant (o instinto moral do
homem), no qual eleva esse “eu” como referência última do mundo possível de ser
conhecido, e defende sua absoluta autonomia como valor absoluto da esfera
moral. No filme em questão, podemos perceber que para a classe trabalhadora a
liberdade não passa de uma ilusão, pois continua presa a um sistema de submissão
da Igreja e do Estado.
A igualdade como sendo natural do homem trás um aspecto dual, no sentido
de que a livre concorrência e a nova forma econômica e política do Estado de se
organizar produz classes sociais distintas: a do dominante e a do dominado. Com
isso, surge a desigualdade. No filme isso é mostrado pela figura representativa
do padre Daens e pelo papel da Igreja com sua doutrina social Rerum Novarum,
que era extremamente importante para a sociedade da época. Daens, ao ascender
seu lado revolucionário, sensibilizado pelas críticas e condições de vida dos
trabalhadores, tenta modificar a consciência que imperava entre a classe
trabalhadora, ou seja, a dominação dos burgueses. O padre Daens, ao se opor ao
tratamento dado aos operários na fábrica, convoca o comitê de investigação para
examiná-la, porém os proprietários trancam as crianças; e as mulheres por
falarem uma língua diferente dos burgueses, não conseguem expor a real situação
da fábrica. Se a liberdade e a igualdade fizessem parte da sociedade, os
trabalhadores teriam os mesmos direitos e o mesmo aprendizado. Uma cena do
filme que representa bem esse aspecto, é a que aparecem o filho do dono da
Indústria tendo aulas com o padre Daens e o garoto filho de trabalhadores
industriais jogando uma pedra na casa dos burgueses, demonstrando toda a sua
fúria pela desigualdade. A Igreja utiliza essa desigualdade como subterfúgio
para novamente mostrar toda a sua força e influência na sociedade, e com sua
doutrina social Rerum Novarum, reforça o direito à propriedade e harmonia entre
as classes sociais. Condena a solução socialista, que instiga nos pobres o ódio
contra os que possuem bens, e que os bens de um indivíduo qualquer devem ser
comuns a todos. Percebemos isso claramente no filme, pois a Igreja Católica e
seus membros apoiam o Capitalismo e a classe burguesa. O padre Daens para
garantir os direitos dos trabalhadores e representá-los, candidata-se a
deputado pelo Partido Social Cristão instruindo a população a utilizar o poder
do voto, que é o ponto crítico do filme exposto. A ampliação do sufrágio
garantiu que todos perante a lei fossem de fato considerados iguais e livres.
Porém, existe um conflito interno do padre Daens, em escolher entre seu chamado
de padre e favorecer a conscientização política da classe trabalhadora. A
Igreja poderia ter interferido positivamente perante as condições vividas pelos
operários, contudo, o que se percebe no filme é a imobilidade dessa
instituição, mantendo uma relação de ameaça com o padre Daens pedindo seu
afastamento da igreja, representada pelo Bispo, pois a igreja como instituição
tinha seus próprios interesses e não queria que o Socialismo tomasse de si o
poder, então alia-se principalmente aos burgueses, deixando que o padre trave
uma luta solidária sozinho, pois a sua única preocupação de fato era a de
manter-se rica e fazer parte da alta sociedade. O Estado, por sua vez, apenas
preocupava-se com as classes trabalhadoras em épocas de eleições, demonstrando
apenas um interesse pessoal e político pelos burgueses, aliados também da
Igreja. Para conseguirem votos, eles distribuíam comida, ofereciam assistência
à população, a fim de continuarem no poder e usufruirem do trabalho que essa
classe oferecia, ou seja, a mão-de-obra “livre”.
Com isto, pode-se perceber que a fraternidade é algo que não se sustenta
na sociedade desde seus primórdios capitalistas, pois a partir do momento em
que o indivíduo demonstra sua singularidade e sua liberdade, sente-se no
direito de se sobrepor aos outros, o que o próprio movimento capitalista
sustenta através da livre concorrência. A livre concorrência trás a divisão das
classes sociais e a desigualdade dos homens. A Igreja como instituição e
representação política de interesses, alia-se ao Estado para exercer sua
influência entre o poder das classes e, ao mesmo tempo, oferece acolhimento
àquelas pessoas que necessitam de algum subterfúgio. Utiliza a Bíblia como
palavra de poder de um Deus “maior”, garantindo que o homem é livre pelos seus
atos; em contrapartida, através de seus dogmas e doses de idealismo, impõe a
esse homem livre a obediência às leis de Deus, pois sua alma a ele pertence,
uma vez que é o criador maior de todo o universo. A igreja, desta forma,
controla pacificamente as rebeliões do homem e seu ímpeto de expressar opiniões
diferentes da consciência coletiva dominadora. O pedado original, nesse
sentido, vem garantir a obediência do homem às regras impostas pela Igreja e
reforçar a ideia de submissão do homem a Deus, por ser-lhe um devedor nato.
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