
A família é a
primeira relação a que o sujeito moderno tem contato com o mundo, e antes
disso, ela já existe como história e como herança psíquica. O sujeito, uma vez
introduzido no meio familiar, faz parte agora de um sistema relacional que
possui uma determinada estrutura e dinâmica e que se organiza a partir das
relações e dos valores que lhe são herdados por essa história familiar. Esses
valores são permeados de um caráter sociocultural e uma vez dados como cruciais
entre os membros da família é difícil estabelecer novas fronteiras e mudanças
que impulsionem-na a se organizar de uma maneira diferente, de enxergar e
vivenciar o mundo e as relações de uma forma mais dialética e compensatória. A
partir dessa nova leitura, a família desta maneira é compreendida como um
sistema relacional complexo e que está constantemente trocando energia com
outros sistemas e subsistemas existentes no mundo.
A privacidade a
partir da leitura de Marilyn Mason em seu texto “Vergonha: reservatório para os
segredos na família”, é o direito que o sujeito tem de se resguardar e de se
manter “só” com seus pensamentos e vivências. É um direito inviolável, no qual
o sujeito se apoia para resguardar alguma situação que diz respeito a algo que
é d(ele). Mas o que realmente separa a privacidade do segredo?
O segredo é algo
que pode ser mantido pela família, por um indivíduo ou até mesmo por alguns
membros familiares. O segredo pode ter também um caráter de pacto, no qual o
outro é cúmplice e assume uma responsabilidade diante dele. O pacto assume um
valor especial para as pessoas que o carregam. Porém, alguns segredos podem
também aprisionar, fazendo as pessoas se sentirem impotentes diante deles pelo
fato de não poderem compartilhá-los e excluir outros; isso causa um conflito
psíquico intenso. O segredo é a proteção de algo que mantém invisível ou
inexistente o seu conteúdo para outros. O segredo mais constantemente envolve
tabus impostos pela cultura e pela sociedade justamente por causar vergonha e
conflito entre as pessoas do grupo.
A vergonha pode
fazer parte de um amplo sistema relacional (dinheiro, família, religião,
sexualidade). Falar de vergonha é falar de cultura e de tabu. A privacidade da
família a protege de vários tabus, principalmente em relação à questão da
violência familiar e do abuso sexual. A vergonha emerge dentro de um contexto
cultural e social que aponta para a moral. A sociedade impõe a forma e os
valores que devemos seguir para sermos aceitos nos padrões sociais; somos
reconhecidos pelo que temos e pela “imagem” que assumimos, e não pela nossa própria
natureza humana. As personas são extremamente necessárias para que o sujeito
possa se adaptar à realidade social e fazem parte também da estrutura da
psique. A persona não deve ser pensada em termos meramente patológicos; neste
caso, a patologia da persona se da pelo fato do indivíduo se identificar de
forma demasiadamente íntima com sua persona. Porém, há uma tendência do
indivíduo de assumir a persona como sendo sua totalidade e realidade, pois se
quebramos as “regras” impostas pela cultura, emerge a vergonha e com ela um
conflito psíquico que a muito o ego pretende ocultar. A vergonha é a mola
propulsora pela busca da perfeição e aceitação social.
Na família,
muitas vezes o mais importante não é o segredo em si, mas sim o que ele
sustenta para essa família e qual o valor que ele tem. Se a estrutura familiar
se sustenta a partir do segredo a fim de obter uma homeostase, o seu fim é
evitar a culpa e a vergonha. Porém, a família também é um sistema
autoregulador, que se adapta constantemente a partir de um contexto
sociocultural. A família é um sistema aberto, e como tal, está em constante
troca com as outras energias que emanam de outros sistemas universais. O
segredo sustentado pela família pode ocasionar sintomas entre os membros nos
quais suas causas são camufladas pelo inconsciente, por conta da energia que
foi dissipada e que não contribui para manter a dialética e compensar os
conteúdos que causam conflitos. Essa tendência da família de manter o segredo
se dá pela energia que já está constante naquele sistema, no qual as tensões
não são intensificadas por outros conteúdos. Quando isso acontece, podemos
supor que há uma tendência da família de manter um fechamento do sistema
familiar. Os segredos familiares estão relacionados com eventos dolorosos da
vida, e a vergonha produzida entre o conflito social e vivencial pode ser
conscientemente conhecida e assimilada ou depositada no inconsciente em
histórias que se tornam mitos familiares. A fidelidade familiar é uma força
emanada do inconsciente, que se liga ao processo da vergonha herdada e que pode
possuir duas estruturas diferentes: 1) carinho natural que sentimos pelos
membros familiares; e 2) “lealdade invisível” que é inconsciente e imposta e
não compreendida. Essa lealdade é herdada pela transmissão psíquica existente
na família. Porém, esses conteúdos depositados na sombra da família precisam
ser elaborados de alguma forma, e eles reaparecem em formas diferentes, são os
fantasmas do passado.
Posto isso, é
extremamente importante que toda essa energia psíquica emanada por todos os
indivíduos do grupo familiar flua de maneira a obter um equilíbrio saudável e
compensador para todos da família. A comunicação entre os membros é de extrema
importância, e o conflito é essência, uma vez que é a partir dele que a energia
se renova e flui de maneira a obter um equilíbrio dinâmico entre os conteúdos,
e dessa forma o grupo familiar consegue se reorganizar de maneira saudável e
compensatória. É importante que as fronteiras e as regras familiares sejam
bastante definidas e visualizadas por todos os membros do grupo familiar e que
o respeito pela natureza de cada um seja exposto de maneira consciente. O
segredo revelado causa um desequilíbrio na família; porém, a família é um
sistema vivo que se autoorganiza e ,em algum momento, essas novas exigências
familiares vão conseguir apreender essa nova realidade e se organizarem a fim
de obterem uma nova estrutura e dar continuidade ao crescimento psicossocial de
cada membro familiar.