CONFRONTO COM O
INCONSCIENTE: REFLEXÕES E CONSIDERAÇÕES.
Ana Priscilla Martins Rocha
“Ninguém está livre do sofrimento enquanto nada na torrente caótica da
vida. Portanto, só posso repetir: não se preocupe comigo. Sigo o meu caminho e
carrego meu fardo tão bem quanto possível. (...) Não existe nenhuma dificuldade
em minha vida que não seja eu mesmo. Ninguém deverá carregar-me enquanto eu
puder manter-me sobre meus próprios pés.”
(carta
a Frances Wickes, de 06.11.1926) Carl Gustav Jung
Confronto
com o inconsciente é um capítulo do livro “Memórias, sonhos e reflexões” do
qual Carl Gustav Jung juntamente com a colaboração de Aniela Jaffé, relata sua
trajetória de vida e o nascimento de teorias que mudaram completamente a
Psicologia da época até os dias de hoje.
No intuito de fazer uma resenha do capítulo para o curso de Capacitação
em psicologia analítica promovido pelo LABIRINTO, também foram obtidas
reflexões acerca de relatos do próprio Jung e foi possível perceber as teorias
desenvolvidas na sua própria experiência.
Após
a ruptura com Freud, se inicia para Jung um período de incertezas interior e
uma completa desorientação, no qual sabemos que Jung fica bastante interrompido
igualmente como aconteceu com sua intensa amizade com Freud. Por conta disso,
Jung passa a assumir uma nova atitude diante de seus pacientes, confiando então
em tudo aquilo que emergia deles incondicionalmente. Para Jung foram
importantes essas experiências das associações e dos relatos de sonhos e
fantasias de seus pacientes, no qual ele deixa um pouco de lado a teoria
vivendo empiricamente todos os fenômenos ocorridos com eles e os ajudando a se
entenderem por si mesmos. Percebeu então
que os sonhos relatavam verdades obscuras do inconsciente, e que eles deveriam
ser os pontos de partida para a investigação de tal modo como se
apresentavam. Jung chega a relatar no
livro, seus próprios pensamentos e seu diálogo com o seu interior (ou supondo, com
o seu número 2), afirmando: “Possuo agora
a chave para a mitologia, e poderei abrir todas as portas da psique humana
inconsciente”. (Jung, pág. 205) Mas algo o questionava sobre isso, algo o
impulsionava a pensar mais, ir além. Em que mito vive o homem nos tempos de
hoje? Será o mito católico? Será que todas as pessoas vivem nesse mito?
Perguntas como essas emergiram de dentro de Jung e ele começou a se sentir
menos a vontade com as respostas e parou de pensar sobre isso. O que me faz
pensar que os mitos no decorrer dos tempos vão sendo superados e substituídos
por outros “mitos”, pois o homem tem a necessidade de criar fantasias e ilusões
para expressar o que tem de mais íntimo. Os mitos se tornam algo coletivo que
permeiam toda uma sociedade. A própria cultura nos impulsiona a isso, a
construção constante de “mitos”, não mais como antigamente, mas como, por
exemplo, o surgimento de heróis e quadrinhos, contos infantis, dogmas.
Na
véspera de Natal, Jung teve um sonho muito interessante, por minha parte. Ele
estava sentado numa cadeira dourada de estilo Renascença, diante de uma mesa de
muita beleza que parecia com esmeralda. Ele olhava a paisagem á distância no
qual a loggia ficava situada no alto
de um castelo antigo. Seus filhos também estavam com ele sentados à mesa. De
repente um pássaro branco posou na mesa, perto deles, e Jung faz um sinal para
seus filhos não se moverem para não assustarem o pássaro. No mesmo instante a
pomba se transformou numa menina de cerca de oito anos, que saiu correndo com
os filhos de Jung e brincavam pelo castelo. De repente a menina desaparece e em
seu lugar surge novamente o pássaro branco que dizia com uma voz humana: “Só nas primeiras horas da noite posso
transformar-me num ser humano, enquanto o pombo cuida dos 12 mortos”. (Jung,
pág. 206) A única coisa que Jung conseguia formular a respeito do sonho foi que
ele indicava uma atividade inabitual do inconsciente. Jung chega a ter outros
sonhos posteriores a esse que também apareciam pessoas mortas que quando Jung
olhava para elas, elas começavam a se animar novamente. Jung então começa a
compartilhar da idéia de Freud de que o inconsciente encerra vestígios de
experiências antigas, mas as compreensões desses sonhos para Jung, fizeram como
que ele percebesse que não seriam apenas conteúdos mortos do inconsciente, mas
que de algum modo pertenciam à psique viva. Esses sonhos de Jung me fizeram
refletir muito a respeito disso tudo vivenciado por ele. Às vezes, pensamos que
certos conteúdos de nossas vidas, estão resolvidos e que eles não alarmam mais
nada no interior de nós, mas basta olharmos atentamente para eles novamente
para que eles ganhem vida, pois esses conteúdos sofrem transformações
constantes, e somente conseguimos entende-los quando eles são representados
através das experiências.
Tentando
entende-los, Jung começa a se sentir como se vivesse sobre um domínio de uma
pressão interna, chegando a ser tão forte que ele supõe que alguma perturbação
psíquica o afetava. Tentou se deter a lembranças de sua infância, pensando em
encontrar em seu passado algo que propiciasse essas perturbações, mas foi infrutífero.
E a partir daí Jung se deixa levar pelos impulsos do inconsciente. A primeira
coisa que se produziu para ele foi uma lembrança de infância de seus 12 anos, época
em que Jung se entregara completamente a brinquedos de construção. É
interessante observar a emoção que Jung fala sobre esse episódio, e perceber
que na infância nos entregamos há imagens e símbolos inconscientemente, fazendo
surgir assim uma criatividade inigualável. Mas isso vai se perdendo com a
maturação, pois precisamos de certo modo, sermos racionais, perdendo a essência
de muitos fenômenos e não conseguindo mais compreende-los na sua instância
maior. É a partir disso, que Jung se entrega novamente a sua infância remota.
Jung
relata que esse momento foi um ponto crucial em seu destino. Só abandonou a
essas brincadeiras quando começou a sentir repulsões e passou então a
colecionar pedras e construir casas, castelo, uma cidade. Percebeu que faltava
uma Igreja, e começou a edificá-la, mas com uma sensação de relutamento. É como
se algo em seu interior o avisasse que algo faltava. Preocupado em resolver o
conflito, foi passear como de costume e encontrou uma pedra vermelha que
parecia com uma pirâmide de quatro lados que chamou bastante sua atenção.
Encontrou então o altar para sua Igreja e isso fez com que Jung lembrasse de um
sonho de infância lhe causando extrema satisfação. Todos os dias se dedicou a
brincar com seus novos brinquedos de construção, tornando assim seus
pensamentos mais claros e apreendendo suas fantasias das quais apenas tivera um
vago pressentimento. Jung então passa a trilhar o caminho que posteriormente
seria o seu mito. A construção representava apenas o início. Ela desencadeava
toda uma seqüência de fantasmas que mais tarde anotei meticulosamente. (Jung,
pág. 209)
Por
volta do ano de 1913, a
pressão que sentira pareceu se deslocar-se para o exterior. Jung chega a
declarar que: “Não parecia tratar-se de
uma situação psíquica, mas de uma realidade concreta”. Jung fez uma viagem
sozinho e foi subitamente assaltado por uma visão: uma onda colossal cobria
todos os países situados entre o Mar do Norte e os Alpes. Quando a onda atingiu
a Suíça, ele viu montanhas se elevarem, como para proteger seu país. Ele via a
morte de vários seres humanos e o mar se transformava em torrentes de sangue.
Visões como essa se seguiram durante duas semanas mais com algumas alterações
no final, e uma voz interior disse: “Olha
bem, isto é real e será assim; portanto, não duvides.” Isso nos faz pensar
ate que certo ponto essas visões de Jung podem ser consideradas
parapsicológicas? Mas para Jung, essa idéia não era clara, mas sim uma idéia de
psicose.
No
dia 1º de agosto estourou a Segunda Guerra Mundial. Foi exatamente onde todas
aquelas visões de seus sonhos com sangue se clarearam para Jung, ele precisava
compreender ate que certo ponto sua própria experiência estava ligada com à
coletividade. Aqui é uma parte bastante significativa para nós estudantes da
Psicologia Analítica, pois percebemos a ligação forte e clara da relação do
indivíduo singular com a coletividade. Aqui começa o esboço do que depois seria
formulado por Jung de inconsciente coletivo. Ele nos atenta ao lê o capítulo
que é preciso primeiramente além de tudo, refletir sobre nós mesmos. Ao tentar
emergir dentro de si mesmo, Jung num mundo totalmente estranho onde tudo lhe
parecia difícil e incompreensível. Mas havia nele uma força vital que desde o
início tencionara encontrar o sentido de tudo que ele estava vivendo. Obedecer à
vontade interior que se expressava intensamente. Parece que sentir e entender o
que aquilo representa era uma saída de paz para Jung, encontrar as imagens que
se ocultavam nas emoções. Jung acrescentava: “Ou talvez, se os estivesse reprimido, seria fatalmente vítima de uma
neurose e os conteúdos do inconsciente destruir-me-iam do mesmo modo. Minha
experiência ensinou-me o quanto é salutar, do ponto de vista terapêutico,
tornar conscientes as imagens que residem por detrás das emoções.” (Jung,
pág. 213) O confronto com o inconsciente fora para Jung não somente uma
experiência científica efetuada sobre ele e no qual resultado ele estava
interessado. Mas tratava-se também de uma experiência tentada com ele mesmo. Hoje
em dia umas das maiores dificuldades da humanidade é tentar entender as
pessoas, e principalmente se entender. O próprio capitalismo impõe que seja
assim, a competitividade fala mais alto e deixamos passar símbolos e imagens
que são altamente importantes para o bem coletivo. Acredito que o mais difícil
de todo esse processo é aprender a sentir e a dar significado aos sentimentos
negativos, que nos causam angustia, mas que fazem parte da nossa existência
tanto como os sentimentos positivos.
Uma
fantasia muito interessante de Jung que o capítulo nos conta foi uma visão de
dois personagens bastante significativos para sua teoria: Elias, um homem idoso
de barba branca e Salomé, uma bela jovem cega, que asseguravam estarem ligados
por toda a eternidade. Uma serpente negra vivia com eles e manifestava uma
intensa inclinação para ele. Salomé inspirava desconfiança e Elias se afigurava
o mais razoável dos três. Jung tenta tornar compreensível a aparição dos
personagens bíblicos em sua fantasia, uma vez que seu pai tinha sido pastor.
Mas isso não esclareciam as coisas. Somente muito depois, quando ele ampliou seus
conhecimentos a ligação do velho com a moça pareceu perfeitamente normal. A
serpente chamava bastante atenção de Jung. Nos mitos, a serpente é muitas vezes
a adversária do herói. Diz-se que o herói tem olhos de serpente, outras vezes,
depois de sua morte, o herói é transformado em serpente e venerado sob essa
forma. Mas na fantasia de Jung a serpente anunciava o mito do herói. Salome
representava a figura da Anima. Cega, pois não vê o sentido real das coisas e
também representava o elemento erótico. Elias é a representação da sabedoria e
do conhecimento. Logo os dois personagens encarnavam o Logos e o Eros.
Outro
personagem de suma importância para Jung precisa ser destacado, Filemon. Ele se
caracterizava em uma atmosfera de tonalidade algo gnóstica. Sua imagem se
representou primeiro num sonho para ele, no qual pintou para figura-la com
maior exatidão. No sonho um velho com cifres e com asas semelhantes ás do
martim-pescador surgia carregando um feixe de quatro chaves, e uma das chaves
estava em suas mãos como se fosse abrir uma porta. Após alguns dias do sonho,
um martim-pescador apareceu morto em seu jardim á beira do lago. Era muito raro
pássaros como esse nos arredores de Zurique. Finalmente Filemon ganhou vida, o
conhecimento de que existem coisas na alma que não são feitas pelo eu, mas que
fazem por si mesmas, possuindo vida própria. Jung chega a afirmar que: “De vez
em quando me fez compreender que havia uma instância em mim capaz de enunciar
coisas que eu não sabia, não pensava, e mesmo coisas com as quais não
concordava.” (Jung, pág. 219) Psicologicamente Filemon seria uma inteligência
superior. Era para Jung um personagem real no qual ele ate passeava pelo
jardim.
Jung
redigindo as anotações que fizera de suas fantasias se pergunta o que ele estaria
fazendo. Uma voz interior respondeu-lhe que era arte. Pensou: “Talvez meu inconsciente tenha elaborado uma
personalidade que não é minha, e que deseja exprimir sua própria opinião.”
Jung reconheceu imediatamente que a voz provinha de uma mulher, mas especificamente
de uma paciente psicopata muito dotada que estabelecera com ele uma
transferência forte. Ela se tornara um personagem vivo do seu mundo interior. Jung se sentiu extremamente interessado por
essa mulher que provinha de seu íntimo. Mais tarde isso veio a se tornar uma
personificação arquetípica no inconsciente do homem, no qual ele designou de
anima e no inconsciente da mulher o animus. É interessante como essas duas
personificações, essas duas figuras arquetípicas estão presentes realmente na sociedade
e como o modo delas de se representarem mudam. Como elas nos impulsionam a
adotar atitudes inconscientes que nos fazem projetar no outro aquilo que
pertence a nós mesmo. Impulsionando sempre numa busca de respostas no exterior.
Há como elas são traiçoeiras. Jung deixa claro nesse capítulo a importância de
se ter um diálogo constante com essas personificações, pois assim as
personificações não podem tecer intrigas. O mais importante é sem dúvidas
diferenciar o consciente dos conteúdos do inconsciente. É necessário para essa
apreensão dos conteúdos do inconsciente, personifica-los estabelecendo assim a
partir da consciência um contato mais ‘direto’ com esses personagens. Essas
personificações parecem ter uma ambigüidade bastante traiçoeira, podendo aniquilar
um homem de uma vez por todas. Ele ressalta que no final, o consciente toma a
frente, pois é ele quem vai ‘compreender’ as manifestações do inconsciente e
tomar posições frente a elas. Jung passou a aprender então a aceitar os
conteúdos do inconsciente.
A
partir de então Jung passa a transcrever suas mandalas para o Livro Vermelho. Era uma tentativa
ineficaz, diga-se de passagem, de uma elaboração estética de suas fantasias. Achava
necessário que fosse feita uma compreensão mais científica dessa realidade
imaginária, sentindo a urgência de tirar conclusões concretas dos
acontecimentos que o inconsciente transmitia, porém para Jung, a elaboração
estética também foi importante, pois através dela ele conseguiu chegar na
compreensão da responsabilidade ética em relação ás imagens. Jung afirma: “Para conseguir a liberação da tirania dos
condicionamentos do inconsciente duas coisas são necessárias: desincumbirmo-nos
de nossas responsabilidades intelectuais e também de nossas responsabilidades
éticas.”. Jung afirma também a importância da família e de seu trabalho,
levar uma vida ordenada como contrapeso á singularidade do seu mundo interior.
Jung
relata que quando olha para trás e reflete sobre o sentido de tudo que ocorreu
na época em que consagrava suas fantasias, ele tem a impressão de ter sido
subjugado por uma mensagem poderosa. Para ele, havia nessas imagens elementos
que não diziam respeito somente a ele, mas também a muitas outras pessoas.
Sentia-se então intrigado a realizar a primeira experiência tentando colocar no
terreno da realidade aquilo que ia descobrindo.
É
muito interessante e instigante perceber que toda a sua trajetória de vida
posteriormente se transformou em suas teorias também. Esse capítulo sem dúvidas
é um dos capítulos mais importantes do livro e é dele que emergem vários
conceitos importantes para a Psicologia Analítica. O que mais me chama a atenção é perceber que
vários acontecimentos são comuns a minha vida, e acredito que seja isso o que
mais me move a estudar a Psicologia Analítica, porque de certo modo, também
possuo a vivência desses conteúdos.