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segunda-feira, 20 de maio de 2013

CONFRONTO COM O INCONSCIENTE: REFLEXÕES E CONSIDERAÇÕES.



CONFRONTO COM O INCONSCIENTE: REFLEXÕES E CONSIDERAÇÕES.


Ana Priscilla Martins Rocha



“Ninguém está livre do sofrimento enquanto nada na torrente caótica da vida. Portanto, só posso repetir: não se preocupe comigo. Sigo o meu caminho e carrego meu fardo tão bem quanto possível. (...) Não existe nenhuma dificuldade em minha vida que não seja eu mesmo. Ninguém deverá carregar-me enquanto eu puder manter-me sobre meus próprios pés.”
                
(carta a Frances Wickes, de 06.11.1926) Carl Gustav Jung



    
Confronto com o inconsciente é um capítulo do livro “Memórias, sonhos e reflexões” do qual Carl Gustav Jung juntamente com a colaboração de Aniela Jaffé, relata sua trajetória de vida e o nascimento de teorias que mudaram completamente a Psicologia da época até os dias de hoje.  No intuito de fazer uma resenha do capítulo para o curso de Capacitação em psicologia analítica promovido pelo LABIRINTO, também foram obtidas reflexões acerca de relatos do próprio Jung e foi possível perceber as teorias desenvolvidas na sua própria experiência.
Após a ruptura com Freud, se inicia para Jung um período de incertezas interior e uma completa desorientação, no qual sabemos que Jung fica bastante interrompido igualmente como aconteceu com sua intensa amizade com Freud. Por conta disso, Jung passa a assumir uma nova atitude diante de seus pacientes, confiando então em tudo aquilo que emergia deles incondicionalmente. Para Jung foram importantes essas experiências das associações e dos relatos de sonhos e fantasias de seus pacientes, no qual ele deixa um pouco de lado a teoria vivendo empiricamente todos os fenômenos ocorridos com eles e os ajudando a se entenderem por si mesmos.  Percebeu então que os sonhos relatavam verdades obscuras do inconsciente, e que eles deveriam ser os pontos de partida para a investigação de tal modo como se apresentavam.  Jung chega a relatar no livro, seus próprios pensamentos e seu diálogo com o seu interior (ou supondo, com o seu número 2), afirmando: “Possuo agora a chave para a mitologia, e poderei abrir todas as portas da psique humana inconsciente”. (Jung, pág. 205) Mas algo o questionava sobre isso, algo o impulsionava a pensar mais, ir além. Em que mito vive o homem nos tempos de hoje? Será o mito católico? Será que todas as pessoas vivem nesse mito? Perguntas como essas emergiram de dentro de Jung e ele começou a se sentir menos a vontade com as respostas e parou de pensar sobre isso. O que me faz pensar que os mitos no decorrer dos tempos vão sendo superados e substituídos por outros “mitos”, pois o homem tem a necessidade de criar fantasias e ilusões para expressar o que tem de mais íntimo. Os mitos se tornam algo coletivo que permeiam toda uma sociedade. A própria cultura nos impulsiona a isso, a construção constante de “mitos”, não mais como antigamente, mas como, por exemplo, o surgimento de heróis e quadrinhos, contos infantis, dogmas.
Na véspera de Natal, Jung teve um sonho muito interessante, por minha parte. Ele estava sentado numa cadeira dourada de estilo Renascença, diante de uma mesa de muita beleza que parecia com esmeralda. Ele olhava a paisagem á distância no qual a loggia ficava situada no alto de um castelo antigo. Seus filhos também estavam com ele sentados à mesa. De repente um pássaro branco posou na mesa, perto deles, e Jung faz um sinal para seus filhos não se moverem para não assustarem o pássaro. No mesmo instante a pomba se transformou numa menina de cerca de oito anos, que saiu correndo com os filhos de Jung e brincavam pelo castelo. De repente a menina desaparece e em seu lugar surge novamente o pássaro branco que dizia com uma voz humana: “Só nas primeiras horas da noite posso transformar-me num ser humano, enquanto o pombo cuida dos 12 mortos”. (Jung, pág. 206) A única coisa que Jung conseguia formular a respeito do sonho foi que ele indicava uma atividade inabitual do inconsciente. Jung chega a ter outros sonhos posteriores a esse que também apareciam pessoas mortas que quando Jung olhava para elas, elas começavam a se animar novamente. Jung então começa a compartilhar da idéia de Freud de que o inconsciente encerra vestígios de experiências antigas, mas as compreensões desses sonhos para Jung, fizeram como que ele percebesse que não seriam apenas conteúdos mortos do inconsciente, mas que de algum modo pertenciam à psique viva. Esses sonhos de Jung me fizeram refletir muito a respeito disso tudo vivenciado por ele. Às vezes, pensamos que certos conteúdos de nossas vidas, estão resolvidos e que eles não alarmam mais nada no interior de nós, mas basta olharmos atentamente para eles novamente para que eles ganhem vida, pois esses conteúdos sofrem transformações constantes, e somente conseguimos entende-los quando eles são representados através das experiências.
Tentando entende-los, Jung começa a se sentir como se vivesse sobre um domínio de uma pressão interna, chegando a ser tão forte que ele supõe que alguma perturbação psíquica o afetava. Tentou se deter a lembranças de sua infância, pensando em encontrar em seu passado algo que propiciasse essas perturbações, mas foi infrutífero. E a partir daí Jung se deixa levar pelos impulsos do inconsciente. A primeira coisa que se produziu para ele foi uma lembrança de infância de seus 12 anos, época em que Jung se entregara completamente a brinquedos de construção. É interessante observar a emoção que Jung fala sobre esse episódio, e perceber que na infância nos entregamos há imagens e símbolos inconscientemente, fazendo surgir assim uma criatividade inigualável. Mas isso vai se perdendo com a maturação, pois precisamos de certo modo, sermos racionais, perdendo a essência de muitos fenômenos e não conseguindo mais compreende-los na sua instância maior. É a partir disso, que Jung se entrega novamente a sua infância remota.
Jung relata que esse momento foi um ponto crucial em seu destino. Só abandonou a essas brincadeiras quando começou a sentir repulsões e passou então a colecionar pedras e construir casas, castelo, uma cidade. Percebeu que faltava uma Igreja, e começou a edificá-la, mas com uma sensação de relutamento. É como se algo em seu interior o avisasse que algo faltava. Preocupado em resolver o conflito, foi passear como de costume e encontrou uma pedra vermelha que parecia com uma pirâmide de quatro lados que chamou bastante sua atenção. Encontrou então o altar para sua Igreja e isso fez com que Jung lembrasse de um sonho de infância lhe causando extrema satisfação. Todos os dias se dedicou a brincar com seus novos brinquedos de construção, tornando assim seus pensamentos mais claros e apreendendo suas fantasias das quais apenas tivera um vago pressentimento. Jung então passa a trilhar o caminho que posteriormente seria o seu mito. A construção representava apenas o início. Ela desencadeava toda uma seqüência de fantasmas que mais tarde anotei meticulosamente. (Jung, pág. 209)
Por volta do ano de 1913, a pressão que sentira pareceu se deslocar-se para o exterior. Jung chega a declarar que: “Não parecia tratar-se de uma situação psíquica, mas de uma realidade concreta”. Jung fez uma viagem sozinho e foi subitamente assaltado por uma visão: uma onda colossal cobria todos os países situados entre o Mar do Norte e os Alpes. Quando a onda atingiu a Suíça, ele viu montanhas se elevarem, como para proteger seu país. Ele via a morte de vários seres humanos e o mar se transformava em torrentes de sangue. Visões como essa se seguiram durante duas semanas mais com algumas alterações no final, e uma voz interior disse: “Olha bem, isto é real e será assim; portanto, não duvides.” Isso nos faz pensar ate que certo ponto essas visões de Jung podem ser consideradas parapsicológicas? Mas para Jung, essa idéia não era clara, mas sim uma idéia de psicose.
No dia 1º de agosto estourou a Segunda Guerra Mundial. Foi exatamente onde todas aquelas visões de seus sonhos com sangue se clarearam para Jung, ele precisava compreender ate que certo ponto sua própria experiência estava ligada com à coletividade. Aqui é uma parte bastante significativa para nós estudantes da Psicologia Analítica, pois percebemos a ligação forte e clara da relação do indivíduo singular com a coletividade. Aqui começa o esboço do que depois seria formulado por Jung de inconsciente coletivo. Ele nos atenta ao lê o capítulo que é preciso primeiramente além de tudo, refletir sobre nós mesmos. Ao tentar emergir dentro de si mesmo, Jung num mundo totalmente estranho onde tudo lhe parecia difícil e incompreensível. Mas havia nele uma força vital que desde o início tencionara encontrar o sentido de tudo que ele estava vivendo. Obedecer à vontade interior que se expressava intensamente. Parece que sentir e entender o que aquilo representa era uma saída de paz para Jung, encontrar as imagens que se ocultavam nas emoções. Jung acrescentava: “Ou talvez, se os estivesse reprimido, seria fatalmente vítima de uma neurose e os conteúdos do inconsciente destruir-me-iam do mesmo modo. Minha experiência ensinou-me o quanto é salutar, do ponto de vista terapêutico, tornar conscientes as imagens que residem por detrás das emoções.” (Jung, pág. 213) O confronto com o inconsciente fora para Jung não somente uma experiência científica efetuada sobre ele e no qual resultado ele estava interessado. Mas tratava-se também de uma experiência tentada com ele mesmo. Hoje em dia umas das maiores dificuldades da humanidade é tentar entender as pessoas, e principalmente se entender. O próprio capitalismo impõe que seja assim, a competitividade fala mais alto e deixamos passar símbolos e imagens que são altamente importantes para o bem coletivo. Acredito que o mais difícil de todo esse processo é aprender a sentir e a dar significado aos sentimentos negativos, que nos causam angustia, mas que fazem parte da nossa existência tanto como os sentimentos positivos.
Uma fantasia muito interessante de Jung que o capítulo nos conta foi uma visão de dois personagens bastante significativos para sua teoria: Elias, um homem idoso de barba branca e Salomé, uma bela jovem cega, que asseguravam estarem ligados por toda a eternidade. Uma serpente negra vivia com eles e manifestava uma intensa inclinação para ele. Salomé inspirava desconfiança e Elias se afigurava o mais razoável dos três. Jung tenta tornar compreensível a aparição dos personagens bíblicos em sua fantasia, uma vez que seu pai tinha sido pastor. Mas isso não esclareciam as coisas. Somente muito depois, quando ele ampliou seus conhecimentos a ligação do velho com a moça pareceu perfeitamente normal. A serpente chamava bastante atenção de Jung. Nos mitos, a serpente é muitas vezes a adversária do herói. Diz-se que o herói tem olhos de serpente, outras vezes, depois de sua morte, o herói é transformado em serpente e venerado sob essa forma. Mas na fantasia de Jung a serpente anunciava o mito do herói. Salome representava a figura da Anima. Cega, pois não vê o sentido real das coisas e também representava o elemento erótico. Elias é a representação da sabedoria e do conhecimento. Logo os dois personagens encarnavam o Logos e o Eros.
Outro personagem de suma importância para Jung precisa ser destacado, Filemon. Ele se caracterizava em uma atmosfera de tonalidade algo gnóstica. Sua imagem se representou primeiro num sonho para ele, no qual pintou para figura-la com maior exatidão. No sonho um velho com cifres e com asas semelhantes ás do martim-pescador surgia carregando um feixe de quatro chaves, e uma das chaves estava em suas mãos como se fosse abrir uma porta. Após alguns dias do sonho, um martim-pescador apareceu morto em seu jardim á beira do lago. Era muito raro pássaros como esse nos arredores de Zurique. Finalmente Filemon ganhou vida, o conhecimento de que existem coisas na alma que não são feitas pelo eu, mas que fazem por si mesmas, possuindo vida própria. Jung chega a afirmar que: “De vez em quando me fez compreender que havia uma instância em mim capaz de enunciar coisas que eu não sabia, não pensava, e mesmo coisas com as quais não concordava.” (Jung, pág. 219) Psicologicamente Filemon seria uma inteligência superior. Era para Jung um personagem real no qual ele ate passeava pelo jardim.
Jung redigindo as anotações que fizera de suas fantasias se pergunta o que ele estaria fazendo. Uma voz interior respondeu-lhe que era arte. Pensou: “Talvez meu inconsciente tenha elaborado uma personalidade que não é minha, e que deseja exprimir sua própria opinião.” Jung reconheceu imediatamente que a voz provinha de uma mulher, mas especificamente de uma paciente psicopata muito dotada que estabelecera com ele uma transferência forte. Ela se tornara um personagem vivo do seu mundo interior.  Jung se sentiu extremamente interessado por essa mulher que provinha de seu íntimo. Mais tarde isso veio a se tornar uma personificação arquetípica no inconsciente do homem, no qual ele designou de anima e no inconsciente da mulher o animus. É interessante como essas duas personificações, essas duas figuras arquetípicas estão presentes realmente na sociedade e como o modo delas de se representarem mudam. Como elas nos impulsionam a adotar atitudes inconscientes que nos fazem projetar no outro aquilo que pertence a nós mesmo. Impulsionando sempre numa busca de respostas no exterior. Há como elas são traiçoeiras. Jung deixa claro nesse capítulo a importância de se ter um diálogo constante com essas personificações, pois assim as personificações não podem tecer intrigas. O mais importante é sem dúvidas diferenciar o consciente dos conteúdos do inconsciente. É necessário para essa apreensão dos conteúdos do inconsciente, personifica-los estabelecendo assim a partir da consciência um contato mais ‘direto’ com esses personagens. Essas personificações parecem ter uma ambigüidade bastante traiçoeira, podendo aniquilar um homem de uma vez por todas. Ele ressalta que no final, o consciente toma a frente, pois é ele quem vai ‘compreender’ as manifestações do inconsciente e tomar posições frente a elas. Jung passou a aprender então a aceitar os conteúdos do inconsciente.
A partir de então Jung passa a transcrever suas mandalas para o Livro Vermelho. Era uma tentativa ineficaz, diga-se de passagem, de uma elaboração estética de suas fantasias. Achava necessário que fosse feita uma compreensão mais científica dessa realidade imaginária, sentindo a urgência de tirar conclusões concretas dos acontecimentos que o inconsciente transmitia, porém para Jung, a elaboração estética também foi importante, pois através dela ele conseguiu chegar na compreensão da responsabilidade ética em relação ás imagens. Jung afirma: “Para conseguir a liberação da tirania dos condicionamentos do inconsciente duas coisas são necessárias: desincumbirmo-nos de nossas responsabilidades intelectuais e também de nossas responsabilidades éticas.”. Jung afirma também a importância da família e de seu trabalho, levar uma vida ordenada como contrapeso á singularidade do seu mundo interior.
Jung relata que quando olha para trás e reflete sobre o sentido de tudo que ocorreu na época em que consagrava suas fantasias, ele tem a impressão de ter sido subjugado por uma mensagem poderosa. Para ele, havia nessas imagens elementos que não diziam respeito somente a ele, mas também a muitas outras pessoas. Sentia-se então intrigado a realizar a primeira experiência tentando colocar no terreno da realidade aquilo que ia descobrindo.
É muito interessante e instigante perceber que toda a sua trajetória de vida posteriormente se transformou em suas teorias também. Esse capítulo sem dúvidas é um dos capítulos mais importantes do livro e é dele que emergem vários conceitos importantes para a Psicologia Analítica.  O que mais me chama a atenção é perceber que vários acontecimentos são comuns a minha vida, e acredito que seja isso o que mais me move a estudar a Psicologia Analítica, porque de certo modo, também possuo a vivência desses conteúdos. 

quinta-feira, 16 de maio de 2013

“Quando a loucura transcende a essência da alma: Análise do filme “Frances””.


Ana Priscilla Martins Rocha
Estudante de Psicologia – UNIFOR

Em Seattle, cidade dos acontecimentos e das grandes estrelas, na época da grande depressão nos EUA, Frances Farmer, uma jovem de muito talento se destaca ao participar de um concurso literário que mudaria sua vida de forma significativa. Com o passar do tempo, ela segue  carreira como atriz de teatro, mas sofrendo forte conflito de resistência de sua mãe e recebendo acusações diante da hipocrisia americana, sendo rotulada como comunista. Ao retornar de uma viagem à Russia, Frances começa a trabalhar na indústria do cinema, pela qual sempre foi levada pelos barrancos inconscientes de sua vida expondo as maiores expressões de sua alma, onde reflete não apenas sua admirável beleza, mas acima de tudo seu talento nato; porém, por conta de sua personalidade forte, sofre diversos desentendimentos com os executivos de Hollywood e sua vida vai se tornando um inferno, de internações à solidão, drogas, agressões e uma infelicidade estampada na alma; contudo, percebe-se que a principal causadora de sua desgraça é a própria mãe. Esta tem um papel importante no contexto de sua história, neurótica, depositando seu próprio narcisismo no sucesso de Frances, pois é tarefa de todo neurótico ficar preso aos seus sofrimentos passados, remoendo suas próprias recordações, cheia de autopaixão.
Frances reflete não apenas uma personalidade forte, que se impõe diante das exigências do mundo, mas há algo que emana das profundezas de sua alma que precisa seguir um destino próprio, e que para isso precisa ser o que é. Mas como realizar as exigências de sua alma, sem sofrer pressão do mundo concreto e material no qual existem tantos conceitos rígidos estabelecidos? Frances seria realmente louca ou apenas não compreendida e não vislumbrada? Considerada uma espécie de “Lúcifer” cinematográfico, mas como não ser considerada? A humanidade sempre precisou criar seus próprios demônios como projeções de suas próprias almas para estampar aquilo que é dito fora das normas e das regras. Como Frances poderia ser normal diante de um mundo que também não é, e principalmente depois de tantas “surpresas” que Hollywood lhe trouxe? Ao recusar-se a jogar conforme as regras de Hollywood, sendo posteriormente internada num hospício e estuprada enquanto se encontrava em tratamento, ela é rotulada de louca. A indústria do entretenimento cria ídolos para depois destruí-los quando bem entender.
De acordo com Dalgalrrondo, o conceito de normalidade é algo de extrema controvérsia, uma vez que existem casos extremos onde logo podemos notar o que é normal e o que é patológico. Contudo, na maior parte dos casos o assunto é permeado por uma linha tênue entre normalidade/anormalidade que acaba sendo difícil estabelecer um conceito rígido, uma vez que na época em que vivemos a normalidade é um ideal a ser alcançado, ou seja, a normalidade é uma “utopia”. A sociedade constrói a ética moralmente correta e esta é considerada normal. Frances ao apresentar comportamentos fortes e rígidos diante das suas exigências, que vão de confronto com os valores estabelecidos por aquela sociedade utópica e enclausurada, reforça uma imagem apreendida pela indústria hollywoodiana como gravemente antissocial e doentia. Frances seguia o seu próprio destino e quanto a isso não há escolhas, pois a experiência e suas múltiplas imagens necessárias estão ai cobrando o seu engajamento e esperando respostas. Ela herdou um presente e uma maldição, nas quais sua única escolha é lidar com esses fenômenos de forma consciente e é exatamente esse impulso criativo que faz de Frances essa personalidade forte. Ela verdadeiramente olha-se no espelho da água e vê em primeiro lugar a sua própria imagem, correndo o risco do encontro consigo mesma. Mas como não padecer sua alma e sua psique diante de todas as tragédias que foram de encontro com sua imagem deturpada? Não se deveria procurar saber como liquidar o padecimento da alma, mas informar-se sobre o que ele significa, o que ele ensina e qual sua finalidade e sentido. É o encontro com a neurose onde temos a oportunidade de conhecer quem somos, pois não somos curados de uma neurose e sim é ela quem nos cura. O padecimento de Frances era uma tentativa da natureza psíquica de cura, e talvez, se sua mãe e aquela sociedade aprendesse que a doença contribui para a nossa saúde e que aquilo que parece neurótico e antissocial contém precisamente o verdadeiro ouro que não encontramos em outra parte senão sintomatizado no próprio corpo, as vissitudes de sua vida teriam tomado um rumo diferente.
A verdadeira loucura do homem reside dentro de si mesmo, é o próprio conflito existencial proporcionado pela cultura e pela sociedade. São os limites que a sociedade impõe ao homem que vai de encontro às suas próprias tendências. A loucura emerge para falar sobre nós, ela é a verdadeira via do que há dentro de cada um. Ela é desconexa, pois a atitude consciente não permite a sua organização e nem o vislumbramento do seu sentido verdadeiro. O que a cultura corrompe é a nossa verdadeira sanidade. Será que existe de fato alguém são nesse mundo? Frances é um retrato fiel de que a loucura e a genialidade são linhas tênues, sua armadura e sua determinação a impulsionaram a seguir seu Daimon. Em minha opinião, o patológico não está no ser diferente e sim no esforço incansável de ser normal.  
A psicopatologia dissocia a cura e a ferida, os manuais psiquiátricos apenas enfocam nos sintomas e não na etiologia, o louco é mal interpretado e raramente é ouvido. É como se o louco não tivesse nada a dizer, como se ele não fizesse parte do mundo real. O louco não é uma máquina em desordem, ele sofre dos mesmos problemas humanos que nós. Frances precisava dizer algo, era uma necessidade intrínseca à sua alma, mas ela não foi ouvida e com isso algo teria que ser “criado” para que ela fosse vista; e o que não fazia sentido, acabou tornando-se depois de sua morte um sentido existencial. A cura psicológica é interna à própria ferida; deveria ser feita uma cisão entre doença e saúde em psicopatologia, mas não é isso que observamos principalmente nos dias de hoje onde o mercado farmacológico está em alta e o importante não é apreender o sentido da doença e sim remover seus sintomas. Frances vivia numa época de depressão e confusão, a sociedade e suas instituições é que são doentes aprisionadas em seus rígidos mecanismos de defesa, na camisa de força da moralidade que cria as próprias categorias nosográficas utilizando-as como forma de normalização.  A psicopatologia possui um pecado mortal que é o seu descaso com a beleza, afinal de contas uma vida tem algo de muito belo, sua tarefa é investigar e explicar, e se um fenômeno estético aparece em algum de seus casos será explicado por uma psicologia que antes de mais nada carece de sensibilidade. O tratamento psicológico com seus coquetéis da “felicidade” e suas formas modernas de cura, não dá espaço para a apreciação estética da história de uma vida. Talvez se Frances fosse vista neste viés onde a beleza é em si mesma uma cura para o mal-estar psicológico, sua vida teria tomado um rumo totalmente diferente.




quarta-feira, 10 de abril de 2013

A privacidade é o subterfúgio da vergonha na qual o segredo sustenta.



Permeando a sociedade em que vivemos hoje, há um assunto extremamente polêmico que é sustentado pelo meio político, pela mídia e pela cultura: a questão da privacidade. O que seria de fato a privacidade de um sujeito e em preciso momento ela emerge? Diante da pergunta, o que nos resta fazer é uma reflexão a respeito do tema sugerido. A privacidade do homem surge dentro de um contexto socioeconômico e cultural que a muito vem perpassando a nossa sociedade e é amplamente acentuada no mundo capitalista. O indivíduo que se diferenciou de outros e que agora tomou posse de sua própria singularidade, agora precisa se resguardar do outro e isso só é possível com a privacidade. A sociedade medieval se organizava por meio do social, as questões familiares eram também questões sociais. Porém, com o surgimento de uma nova classe social e uma nova estrutura burguesa, os valores sociais se modificaram e a questão da privacidade é agora o ponto crucial da sustentação da base familiar da época. Os tabus vão sendo inseridos agora como formas típicas de padrões de comportamentos que o sujeito precisa manter para ser aceito plenamente numa sociedade dita moral. A questão aqui não é mais apenas o desenvolvimento pessoal do homem; agora é mais um subterfúgio criado pela própria sociedade para preservar os valores culturais e impor ao homem modos típicos de comportamento. O homem, em seu desenvolvimento, possui estruturas psíquicas que lhe são inerentes, e que se organizam de maneira dialógica e autêntica. A energia psíquica precisa fluir de alguma maneira, porém sabemos que o homem está inserido em um meio cultural e histórico, em que é impossível dissociá-lo da construção psíquica do homem.


A família é a primeira relação a que o sujeito moderno tem contato com o mundo, e antes disso, ela já existe como história e como herança psíquica. O sujeito, uma vez introduzido no meio familiar, faz parte agora de um sistema relacional que possui uma determinada estrutura e dinâmica e que se organiza a partir das relações e dos valores que lhe são herdados por essa história familiar. Esses valores são permeados de um caráter sociocultural e uma vez dados como cruciais entre os membros da família é difícil estabelecer novas fronteiras e mudanças que impulsionem-na a se organizar de uma maneira diferente, de enxergar e vivenciar o mundo e as relações de uma forma mais dialética e compensatória. A partir dessa nova leitura, a família desta maneira é compreendida como um sistema relacional complexo e que está constantemente trocando energia com outros sistemas e subsistemas existentes no mundo.


A privacidade a partir da leitura de Marilyn Mason em seu texto “Vergonha: reservatório para os segredos na família”, é o direito que o sujeito tem de se resguardar e de se manter “só” com seus pensamentos e vivências. É um direito inviolável, no qual o sujeito se apoia para resguardar alguma situação que diz respeito a algo que é d(ele). Mas o que realmente separa a privacidade do segredo?


O segredo é algo que pode ser mantido pela família, por um indivíduo ou até mesmo por alguns membros familiares. O segredo pode ter também um caráter de pacto, no qual o outro é cúmplice e assume uma responsabilidade diante dele. O pacto assume um valor especial para as pessoas que o carregam. Porém, alguns segredos podem também aprisionar, fazendo as pessoas se sentirem impotentes diante deles pelo fato de não poderem compartilhá-los e excluir outros; isso causa um conflito psíquico intenso. O segredo é a proteção de algo que mantém invisível ou inexistente o seu conteúdo para outros. O segredo mais constantemente envolve tabus impostos pela cultura e pela sociedade justamente por causar vergonha e conflito entre as pessoas do grupo.


A vergonha pode fazer parte de um amplo sistema relacional (dinheiro, família, religião, sexualidade). Falar de vergonha é falar de cultura e de tabu. A privacidade da família a protege de vários tabus, principalmente em relação à questão da violência familiar e do abuso sexual. A vergonha emerge dentro de um contexto cultural e social que aponta para a moral. A sociedade impõe a forma e os valores que devemos seguir para sermos aceitos nos padrões sociais; somos reconhecidos pelo que temos e pela “imagem” que assumimos, e não pela nossa própria natureza humana. As personas são extremamente necessárias para que o sujeito possa se adaptar à realidade social e fazem parte também da estrutura da psique. A persona não deve ser pensada em termos meramente patológicos; neste caso, a patologia da persona se da pelo fato do indivíduo se identificar de forma demasiadamente íntima com sua persona. Porém, há uma tendência do indivíduo de assumir a persona como sendo sua totalidade e realidade, pois se quebramos as “regras” impostas pela cultura, emerge a vergonha e com ela um conflito psíquico que a muito o ego pretende ocultar. A vergonha é a mola propulsora pela busca da perfeição e aceitação social.



Na família, muitas vezes o mais importante não é o segredo em si, mas sim o que ele sustenta para essa família e qual o valor que ele tem. Se a estrutura familiar se sustenta a partir do segredo a fim de obter uma homeostase, o seu fim é evitar a culpa e a vergonha. Porém, a família também é um sistema autoregulador, que se adapta constantemente a partir de um contexto sociocultural. A família é um sistema aberto, e como tal, está em constante troca com as outras energias que emanam de outros sistemas universais. O segredo sustentado pela família pode ocasionar sintomas entre os membros nos quais suas causas são camufladas pelo inconsciente, por conta da energia que foi dissipada e que não contribui para manter a dialética e compensar os conteúdos que causam conflitos. Essa tendência da família de manter o segredo se dá pela energia que já está constante naquele sistema, no qual as tensões não são intensificadas por outros conteúdos. Quando isso acontece, podemos supor que há uma tendência da família de manter um fechamento do sistema familiar. Os segredos familiares estão relacionados com eventos dolorosos da vida, e a vergonha produzida entre o conflito social e vivencial pode ser conscientemente conhecida e assimilada ou depositada no inconsciente em histórias que se tornam mitos familiares. A fidelidade familiar é uma força emanada do inconsciente, que se liga ao processo da vergonha herdada e que pode possuir duas estruturas diferentes: 1) carinho natural que sentimos pelos membros familiares; e 2) “lealdade invisível” que é inconsciente e imposta e não compreendida. Essa lealdade é herdada pela transmissão psíquica existente na família. Porém, esses conteúdos depositados na sombra da família precisam ser elaborados de alguma forma, e eles reaparecem em formas diferentes, são os fantasmas do passado.


Posto isso, é extremamente importante que toda essa energia psíquica emanada por todos os indivíduos do grupo familiar flua de maneira a obter um equilíbrio saudável e compensador para todos da família. A comunicação entre os membros é de extrema importância, e o conflito é essência, uma vez que é a partir dele que a energia se renova e flui de maneira a obter um equilíbrio dinâmico entre os conteúdos, e dessa forma o grupo familiar consegue se reorganizar de maneira saudável e compensatória. É importante que as fronteiras e as regras familiares sejam bastante definidas e visualizadas por todos os membros do grupo familiar e que o respeito pela natureza de cada um seja exposto de maneira consciente. O segredo revelado causa um desequilíbrio na família; porém, a família é um sistema vivo que se autoorganiza e ,em algum momento, essas novas exigências familiares vão conseguir apreender essa nova realidade e se organizarem a fim de obterem uma nova estrutura e dar continuidade ao crescimento psicossocial de cada membro familiar.



segunda-feira, 8 de abril de 2013

Um pequeno e simples esboço dos três niveis psíquicos.



Falar das etapas da vida humana e de sua construção que visa um sujeito subjetivo e singular é uma tarefa difícil, pois envolve todo o caráter multidimensional e dinâmico de suas estruturas e de sua vida psíquica que provém do nascimento até a morte, etapa ultima na estância do desconhecido. A psicologia analítica visa à construção de um saber que priorize a totalidade do indivíduo a partir de suas experiências e da dinâmica ambivalente através da compensação dos opostos existentes na própria estrutura dinâmica da alma humana. A personalidade não é algo petrificada, mas está em contínua construção a partir de suas experiências e de sua responsabilidade consigo para construir uma identidade sólida e aceitar sua própria existência a partir de sua própria natureza. Jung em seu livro “A natureza da psique” visou tratar o indivíduo a partir de uma leitura fenomenológica de suas experiências com certos problemas acometidos durante o desenvolvimento do indivíduo, ou seja, a partir de coisas que são difíceis, questionáveis e ambíguas. Jung afirmava:



“Pelo contrário, trataremos apenas de certos problemas, isto é, de coisas que são difíceis, questionáveis ou ambíguas; numa palavra: de questões que nos permitem mais de uma resposta – e, além do mais, respostas que nunca são suficientemente seguras e inteiramente claras” (A natureza da psique, XVI – as etapas da vida humana, pág. Xx)







A partir dessa leitura, é possível perceber que abarcar todos os fenômenos a respeito da alma humana é uma tarefa quase impossível; embora os fenômenos psíquicos seja uma parte do mundo é difícil apreender todos os fenômenos que emanam da alma.  Os fenômenos que podemos experimentar diretamente são os conteúdos da consciência humana. A consciência humana é aquela que rege as percepções sensoriais dadas pelos órgãos dos sentidos na medida em que o individuo vai experienciando o mundo, porém ela não deduz o que os fenômenos sejam em si (essência), pois isto é uma tarefa do processo de apercepção, no qual é extremamente complexa e tem um caráter extremamente psíquico. Existem também certos conteúdos da experiência que transcendem a nossa percepção sensorial e que a existência psíquica desses conteúdos somente é acessível por via indireta, nos quais podemos observar claramente esses conteúdos através dos sonhos. Nos estados patológicos podemos também encontrar exemplos visíveis da existência de uma atividade psíquica que foge da consciência do individuo, e por conta disso estamos certos em falar que a alma também possui uma estrutura inconsciente. Jung a partir de suas observações, experiência e estudos pode aprofundar mais o seu conhecimento da alma humana e distinguiu três níveis psíquicos, a saber: 1) consciência; 2) inconsciente pessoal que são conteúdos que perderam suas intensidades e por isso caíram no esquecimento imediato, seja porque a consciência se retirou deles devido a um conflito dos conteúdos (repressão) e, depois, conteúdos que nunca estiveram na consciência devida a sua baixíssima intensidade e 3) o inconsciente coletivo, que como herança imemorial e atemporal com várias possibilidades de representação, porém não sendo de caráter individual, mas universal, esta contido os arquétipos e os instintos e a partir de sua estrutura constitui a verdadeira base do psiquismo individual.



O inconsciente coletivo como sendo atemporal e universal é extremamente difícil formular um conhecimento concreto a respeito de sua estrutura e dinâmica e o que podemos é apenas supor explicações. Porém, a mitologia é uma espécie de projeção do inconsciente coletivo, nos quais seus conteúdos experienciados foram constelados e projetados nas lendas e nos contos de fadas ou em personagens históricos e principalmente podemos percebê-lo nos elementos religiosos. Jung ao falar dos arquétipos em seu texto “A estrutura da alma” afirma:



“As condições psicológicas do meio ambiente naturalmente deixam traços místicos semelhantes atrás de si. Situações perigosas, sejam elas perigos para o corpo ou ameaças para a alma, provocam fantasias carregadas de afeto, e na medida em que tais situações se repetem de forma típica, dão origem a arquétipos, nome que eu dei aos temas místicos similares em geral”.





O inconsciente coletivo é um repositório de todas as experiências humanas desde os tempos mais imemoriais, porém, é um repositório vivo e criativo que impulsionam também o indivíduo a seguir seu próprio caminho mesmo que seja invisível a sua percepção. O inconsciente é também a fonte dos instintos, visto que os arquétipos são as formas através das quais os instintos se expressam na vida psíquica do individuo. É a partir da fonte dos instintos que a psique é criativa; e por isto mesmo, o inconsciente não é apenas histórico, mas gera também um impulso criador; impulso esse que será expresso pela consciência individual que é de extrema importância para a constituição do individuo, pois é a partir dela que o homem se torna consciente não apenas de sua vida exterior, mas também da vida interior. A consciência é responsável por todas as adaptações e orientações da vida do homem, e por isso o desenvolvimento do homem pode ser comparado com a sua orientação no espaço. O inconsciente pelo contrário, é a fonte de todas as energias instintivas da psique e contem as formas ou categorias que as regulam, que são os arquétipos.

sexta-feira, 5 de abril de 2013

Um pouco de utopia não faz mal.




“A educação só pode ser feita a partir da realidade nua, não de uma imagem real deturpada. “

(Carl Gustav Jung)


“Eu gostaria de ser lembrado como alguém que amou o mundo, as pessoas, os bichos, as árvores, a terra, a água, a vida.”
(Paulo Freire)



Sem sombra de dúvidas que Paulo Freire foi um dos mais admirados pensadores que perpassam a nossa sociedade até hoje. Seu método educativo trouxe mais uma vez a esperança que a nossa sociedade brasileira a muito almejava. Sua visão de mundo é um reflexo de suas próprias vivências e reflexões sobre aquilo que o cercava. Muitos criticam seus métodos e dizem que Paulo Freire era bastante utópico. Mas um pouco de utopia não faz mal, precisamos disso para viver, pois é através da utopia que o sujeito se movimenta para a busca de uma humanização do mundo.  Paulo se apóia no instinto moral em que todos nos temos e é universal. A curiosidade, a vontade do ser humano de se permitir ampliar seus conhecimentos e assim se conhecer. É possível mudarmos o mundo? Paulo Freire acreditava que sim, e que poderia ser realizado através de uma educação plena e com respeito pelo próximo. A libertação está no conhecimento do homem, na busca de seu ser em totalidade, na solidariedade com o próximo, na construção de uma sociedade plenamente consciente. A educação é dialética, é algo que é construída por todos a todo o momento, ela é bilateral. Paulo Freire acreditava que a verdadeira humanização dos métodos educativos era a solução para os problemas que afligiam a sociedade brasileira. Educador e educando teriam que construir os conhecimentos de forma mútua e no sentido de que essas construções se aplicassem as suas vivências pessoais, tocasse a alma humana com todo fervor. O verdadeiro conhecimento é aquele que reside dentro do homem, o modifica, torna-o capaz de uma reflexão crítica e um posicionamento diante das barreiras da vida. No meu ponto de vista, a educação tem muito a contribuir com a Psicologia no sentido de que o psicólogo é um facilitador, ele compreende o sujeito na sua forma mais ampla e o ajuda a perceber seu verdadeiro eu e aceita-lo. A construção do conhecimento é algo que depende do outro também, pois a partir do outro, percebemos quem nós somos e nos constituímos como sujeito. O homem não nasceu para necessariamente modificar o mundo, mas se modificar e se conhecer, e a partir de suas vivências plenas e auto-conhecimento, o homem poderia contribuir de forma significativa para a construção de uma consciência moral coletiva ampla e solidária. Essas eram as maiores intenções de Paulo Freire e seus maiores ensinamentos. Os seus livros abordam questões de problematização, conscientização e solidariedade. O que percebemos nos dias de hoje enquanto a educação no Brasil é um déficit na estrutura e organização, na qual o sistema se apóia exclusivamente no dever educativo deixando passar os aspectos vivenciais do individuo e da sua constituição como sujeito a partir de suas relações sociais. Muitos educadores ainda estão presos à educação tradicional que sustenta uma posição de magistério em relação aos seus educandos deixando de construir uma relação dialética que contribui de forma significativa para a formação dos dois lados. Muitos educadores precisam ser educados também de forma que dêem um significado real para suas vivências e relações. 



 

quinta-feira, 4 de abril de 2013

Psicologia como biopoder?



Em meio aos muitos assuntos que permeiam o mundo científico nos dias de hoje e como pesquisadora/observadora empírica, atenta aos fenômenos produzidos pelo mundo e pela alma humana - e, é claro, as vezes deixando de perceber muitos detalhes porque faz parte do processo - , eu absolutamente não posso me calar diante da situação que presenciei esses dias por tratar-se de temas significativos. E, ainda, como minha pesquisa que está em andamento para transformar-se em um artigo é uma crítica interna ao fazer psicológico, é de minha responsabilidade expor aqui mais uma vez a minha opinião sobre o assunto.

 
Pergunto-me: o que realmente está acontecendo com o fazer/saber psicológico? Entrou realmente em pé de guerra? Minha modesta crítica parte de um referencial, baseado na matéria que saiu na Folha de São Paulo esses dias: “Manifesto defende psicanálise como opção para autismo”. A matéria fala do movimento que a Psicanálise está realizando devido à tentativa das políticas públicas de excluirem-na como opção para tratamento de crianças autistas e priorizarem o saber psiquiátrico e a TCC. Essa matéria gerou discussões entre alguns alunos do curso de Psicologia da Unifor, em um grupo fechado no Facebook, e me fez questionar e refletir sobre vários pontos referentes à Psicologia nos dias de hoje.

  James Hillman em seu mais novo livro O código do Ser , parte de um pressuposto que me chamou bastante atenção, quando afirma:


“De todos os pecados da psicologia, o mais mortal é seu descaso pela beleza. Afinal de contas, uma vida tem algo de muito belo. Mas quem lê os livros de psicologia não fica com essa impressão. Mais uma vez, a psicologia trai o que ela estuda. Nem a psicologia social, nem a experimental, nem a terapêutica dão espaço para a apreciação estética da história de uma vida. Sua tarefa é investigar e explicar, e se um fenômeno estético aparecer em algum de seus casos (e não apenas nos esteticamente dedicados, como Jackson Pollock, Colette ou Manolete), será explicado por uma psicologia que antes de mais nada carece de sensibilidade estética.”


O que me fez refletir bastante foi o ponto em que a Psicologia agora também é vista como “biopoder”. Daí, fiquei me perguntando: onde realmente está aqui a preocupação intrínseca com a alma humana? As pessoas ficam discutindo o que uma abordagem X pode fazer que seja melhor que a abordagem Y, mas esquecem o principal: olhar fenomenologicamente e humanamente para o problema em questão que é o autismo. O que nos falta meu caro, é o AMOR, A COMPAIXÃO, A RESPONSABILIDADE E O RESPEITO. É olhar para uma vida, considerando que esta é mais uma vida que está em movimento, em relação ininterrupta com o mundo e construindo experiências. Não me atrevo aqui a dizer que as questões biológicas, orgânicas, psicológicas, sociais, culturais, enfim não sejam importantes e não precisem ser levadas em consideração. O problema mais uma vez está no posicionamento ético e nas atitudes que cada profissional adota como prática. Onde está o desejo de ajudar os que sofrem? O último resquício do Romantismo a muito se perdeu nessa sociedade capitalista que visa o biopoder como instância última. A psicologia não pode existir sem beleza, sem vida, sem amor, sem vivência múltipla, pois sem a beleza - muito bem exposta por Hillman - torna-se vítima de suas próprias críticas cognitivas e a paixão que um dia teve, perder-se-á no afã da conquista de uma posição.A Psicologia, hoje, tem se preocupado com o progresso e,obviamente, deve acompanhar o que perpassa o agora; porém, nunca deverá esquecer-se do principal: a alma.

terça-feira, 2 de abril de 2013

“Liberdade, Igualdade e Fraternidade: a complexa equação dos ideais da sociedade industrial. Uma análise a partir de Simmel e do filme Daens – Um grito de Justiça.”

Bom dia pessoal! O post de hoje é um ensaio baseado no filme "Daens - Um grito de Justiça" e o texto de Simmel "Indivíduo, liberdade e igualdade" feito para a disciplina de Sociologia do curso de Psicologia da Universidade de Fortaleza. 



 “Liberdade, Igualdade e Fraternidade: a complexa equação dos ideais da sociedade industrial. Uma análise a partir de Simmel e do filme Daens – Um grito de Justiça.” ··.



Ana Priscilla Martins Rocha






“Liberté, Egalité e Fraternité”, famosa frase muito utilizada em meados da Revolução Francesa, que representa toda a ideologia da sociedade livre, igualitária e fraternal. A Revolução Industrial trouxe mudanças significativas nas estruturas socioculturais, políticas, econômicas e religiosas em toda a Europa, que se apoiavam na liberdade e igualdade do homem como subterfúgio de suas próprias ambições políticas e econômicas. Embora entendamos que a frase não se sustenta, o importante é a compreensão de todos os elementos e fenômenos que, dados seus significados, apontam para uma sociedade falha na formação e consolidação de sua estrutura e modo de ver o homem e o mundo. A relação da liberdade que se apoia na igualdade para se justificar é uma faca de dois gumes, visto que essa concepção permanece em uma relação de dicotomia. A igualdade não se sustenta, pois apesar de termos certas necessidades iguais (de comer, beber, dormir, de comunicação) possuímos vontades e motivações diferentes, apoiadas em instintos que são comuns a todos, porém que se utilizam e manifestam-se de formas diferentes, criando uma desigualdade. Para realizar essa reflexão de uma maneira mais sólida e significativa, utilizamos como método de investigação o filme Daens – Um grito de Justiça e a leitura do texto Indivíduo, liberdade e igualdade, de Simmel, para complementarmos a observação de todos os fenômenos expostos.

O filme se passa nos anos de 1890, norte da Bélgica, um dos cenários da Revolução Industrial Européia, na cidade de Aalst. O enredo é desenvolvido a partir da vida dos trabalhadores de uma fábrica de tecidos, onde homens, mulheres e crianças vivenciavam um estado de plena miséria por conta dos baixos salários que recebiam. A situação caótica da população é algo muito relevante no filme: há muita pobreza, muita submissão e pouca esperança. A vida daquela sociedade passa a ter uma nova direção com a chegada do padre Daens, que vem morar com o irmão jornalista, aproveitando o jornal da cidade filiado ao partido católico para expor seus ideais e ambições. Ao escrever artigos contra a política e o sistema de trabalho e exploração locais da época, Daens desperta na classe trabalhadora um espírito de luta e coragem pela conquista de seus direitos.

Com o Capitalismo, as relações de trabalho modificaram várias estruturas da sociedade da época, provocando um aumento significativo da população vinda para as cidades em busca de novas condições de sobrevivência para suas famílias. O filme retrata com fidelidade esse aumento populacional, mostrando a realidade daquelas famílias e a intensa desigualdade social onde, muitas vezes, as famílias não possuíam os mínimos recursos para sobreviverem. O Feudalismo era uma forma de trabalho mais comunitária, uma vez que as pessoas tinham que trabalhar em grupos para garantirem a produção econômica dos senhores feudais. Esses grupos tiveram um caráter de unidades niveladoras, fazendo camuflar os traços individuais de cada sujeito e reprimindo a sua singularidade. A nova forma de trabalho - a propriedade privada -, que se apoia na liberdade econômica, faz emergir uma nova forma do homem se impor no mundo. Agora apoiado num instinto de poder para garantir sua própria sobrevivência nessa nova forma de organização social, passa a desenvolver um desejo individual de aparecer, a fim de se diferenciar dos outros homens, desenvolver suas próprias potencialidades e se distinguir dos demais. Num primeiro momento, o homem era apenas dono de sua força de trabalho, porém para se inscrever nesta nova forma de atuar economicamente nas fábricas, o homem desenvolve um senso de individualidade com as potências que lhe são próprias, e vende essa nova forma de trabalho por condições desfavoráveis em troca de salários. No filme isso é retratado muito bem, quando visualizamos mulheres e crianças agora fazendo parte também do meio de produção industrial, pois a preocupação da classe burguesa era desenvolver suas empresas para garantir o aumento de seus lucros, e acreditava que as mulheres e as crianças eram mais suscetíveis a tais atividades, pois a ideia primordial era a de aproveitar ao máximo a força de trabalho de todos que a possuíam; e assim que esta força fosse desgastada, haveria um número enorme de pessoas aguardando este momento de opressão e exploração, uma vez que não existia alternativa senão submeter-se a tais condições para garantir sua sobrevivência e de sua família. Outra questão que poderíamos supor é que mulheres e crianças tinham menos forças para lutarem pelas opressões da classe burguesa do que os homens. É nesse contexto que emerge a individualidade, porém, na medida em que esse individualismo se manifesta como uma procura de distinção, o homem sente a necessidade de criar outro conceito para expressar essa singularidade sem obter pressões dentro de um sistema hierárquico. É quando aparece o conceito de liberdade. A própria classe burguesa para desenvolver suas empresas, ampliar seus mercados consumidores e utilizar-se de mão-de-obra barata, sustenta-se nesse conceito de liberdade econômica. Enquanto trabalhadores buscavam essa nova forma de atuarem para garantirem a própria sobrevivência, os donos das fábricas exploravam ao máximo esse momento sem se preocuparem com as condições dos mesmos. Uma cena marcante que mostra o desinteresse da classe burguesa pelas condições de trabalho dos trabalhadores é a conversa entre o Sr. Daens e o Sr. Woeste, quando este nega a verdade exposta das crianças que estão morrendo dentro das fábricas.

 A liberdade é um aspecto político criado pelo próprio homem, sendo inclusive o seu ideal. A livre concorrência sustenta que o homem é livre para fazer suas escolhas e é responsável pelas condições a que se submete; porém, se o homem é livre, todos teriam que ser tratados igualmente e com total liberdade e isso acaba criando um paradoxo, pois já que o homem é livre ele pode muito bem querer ser diferente, mas se é obrigado a ser igual, sua liberdade é revogada. A liberdade apresenta então seus conflitos, já que mesmo o homem tomando suas próprias decisões, existem outros fatores que interferem nessa liberdade (o ambiente, as próprias instituições, a Igreja etc). Outra questão paradoxal seria: ainda que o homem seja livre, essa liberdade impede que seus desejos entrem em choque com o desejo dos outros, pois como a minha liberdade de dirigir embriagado interfere na liberdade do outro de andar pela rua sem ter sua vida ameaçada? O texto do Simmel trás esse aspecto a partir do Idealismo de Kant (o instinto moral do homem), no qual eleva esse “eu” como referência última do mundo possível de ser conhecido, e defende sua absoluta autonomia como valor absoluto da esfera moral. No filme em questão, podemos perceber que para a classe trabalhadora a liberdade não passa de uma ilusão, pois continua presa a um sistema de submissão da Igreja e do Estado.

A igualdade como sendo natural do homem trás um aspecto dual, no sentido de que a livre concorrência e a nova forma econômica e política do Estado de se organizar produz classes sociais distintas: a do dominante e a do dominado. Com isso, surge a desigualdade. No filme isso é mostrado pela figura representativa do padre Daens e pelo papel da Igreja com sua doutrina social Rerum Novarum, que era extremamente importante para a sociedade da época. Daens, ao ascender seu lado revolucionário, sensibilizado pelas críticas e condições de vida dos trabalhadores, tenta modificar a consciência que imperava entre a classe trabalhadora, ou seja, a dominação dos burgueses. O padre Daens, ao se opor ao tratamento dado aos operários na fábrica, convoca o comitê de investigação para examiná-la, porém os proprietários trancam as crianças; e as mulheres por falarem uma língua diferente dos burgueses, não conseguem expor a real situação da fábrica. Se a liberdade e a igualdade fizessem parte da sociedade, os trabalhadores teriam os mesmos direitos e o mesmo aprendizado. Uma cena do filme que representa bem esse aspecto, é a que aparecem o filho do dono da Indústria tendo aulas com o padre Daens e o garoto filho de trabalhadores industriais jogando uma pedra na casa dos burgueses, demonstrando toda a sua fúria pela desigualdade. A Igreja utiliza essa desigualdade como subterfúgio para novamente mostrar toda a sua força e influência na sociedade, e com sua doutrina social Rerum Novarum, reforça o direito à propriedade e harmonia entre as classes sociais. Condena a solução socialista, que instiga nos pobres o ódio contra os que possuem bens, e que os bens de um indivíduo qualquer devem ser comuns a todos. Percebemos isso claramente no filme, pois a Igreja Católica e seus membros apoiam o Capitalismo e a classe burguesa. O padre Daens para garantir os direitos dos trabalhadores e representá-los, candidata-se a deputado pelo Partido Social Cristão instruindo a população a utilizar o poder do voto, que é o ponto crítico do filme exposto. A ampliação do sufrágio garantiu que todos perante a lei fossem de fato considerados iguais e livres. Porém, existe um conflito interno do padre Daens, em escolher entre seu chamado de padre e favorecer a conscientização política da classe trabalhadora. A Igreja poderia ter interferido positivamente perante as condições vividas pelos operários, contudo, o que se percebe no filme é a imobilidade dessa instituição, mantendo uma relação de ameaça com o padre Daens pedindo seu afastamento da igreja, representada pelo Bispo, pois a igreja como instituição tinha seus próprios interesses e não queria que o Socialismo tomasse de si o poder, então alia-se principalmente aos burgueses, deixando que o padre trave uma luta solidária sozinho, pois a sua única preocupação de fato era a de manter-se rica e fazer parte da alta sociedade. O Estado, por sua vez, apenas preocupava-se com as classes trabalhadoras em épocas de eleições, demonstrando apenas um interesse pessoal e político pelos burgueses, aliados também da Igreja. Para conseguirem votos, eles distribuíam comida, ofereciam assistência à população, a fim de continuarem no poder e usufruirem do trabalho que essa classe oferecia, ou seja, a mão-de-obra “livre”.

Com isto, pode-se perceber que a fraternidade é algo que não se sustenta na sociedade desde seus primórdios capitalistas, pois a partir do momento em que o indivíduo demonstra sua singularidade e sua liberdade, sente-se no direito de se sobrepor aos outros, o que o próprio movimento capitalista sustenta através da livre concorrência. A livre concorrência trás a divisão das classes sociais e a desigualdade dos homens. A Igreja como instituição e representação política de interesses, alia-se ao Estado para exercer sua influência entre o poder das classes e, ao mesmo tempo, oferece acolhimento àquelas pessoas que necessitam de algum subterfúgio. Utiliza a Bíblia como palavra de poder de um Deus “maior”, garantindo que o homem é livre pelos seus atos; em contrapartida, através de seus dogmas e doses de idealismo, impõe a esse homem livre a obediência às leis de Deus, pois sua alma a ele pertence, uma vez que é o criador maior de todo o universo. A igreja, desta forma, controla pacificamente as rebeliões do homem e seu ímpeto de expressar opiniões diferentes da consciência coletiva dominadora. O pedado original, nesse sentido, vem garantir a obediência do homem às regras impostas pela Igreja e reforçar a ideia de submissão do homem a Deus, por ser-lhe um devedor nato.