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quinta-feira, 16 de maio de 2013

“Quando a loucura transcende a essência da alma: Análise do filme “Frances””.


Ana Priscilla Martins Rocha
Estudante de Psicologia – UNIFOR

Em Seattle, cidade dos acontecimentos e das grandes estrelas, na época da grande depressão nos EUA, Frances Farmer, uma jovem de muito talento se destaca ao participar de um concurso literário que mudaria sua vida de forma significativa. Com o passar do tempo, ela segue  carreira como atriz de teatro, mas sofrendo forte conflito de resistência de sua mãe e recebendo acusações diante da hipocrisia americana, sendo rotulada como comunista. Ao retornar de uma viagem à Russia, Frances começa a trabalhar na indústria do cinema, pela qual sempre foi levada pelos barrancos inconscientes de sua vida expondo as maiores expressões de sua alma, onde reflete não apenas sua admirável beleza, mas acima de tudo seu talento nato; porém, por conta de sua personalidade forte, sofre diversos desentendimentos com os executivos de Hollywood e sua vida vai se tornando um inferno, de internações à solidão, drogas, agressões e uma infelicidade estampada na alma; contudo, percebe-se que a principal causadora de sua desgraça é a própria mãe. Esta tem um papel importante no contexto de sua história, neurótica, depositando seu próprio narcisismo no sucesso de Frances, pois é tarefa de todo neurótico ficar preso aos seus sofrimentos passados, remoendo suas próprias recordações, cheia de autopaixão.
Frances reflete não apenas uma personalidade forte, que se impõe diante das exigências do mundo, mas há algo que emana das profundezas de sua alma que precisa seguir um destino próprio, e que para isso precisa ser o que é. Mas como realizar as exigências de sua alma, sem sofrer pressão do mundo concreto e material no qual existem tantos conceitos rígidos estabelecidos? Frances seria realmente louca ou apenas não compreendida e não vislumbrada? Considerada uma espécie de “Lúcifer” cinematográfico, mas como não ser considerada? A humanidade sempre precisou criar seus próprios demônios como projeções de suas próprias almas para estampar aquilo que é dito fora das normas e das regras. Como Frances poderia ser normal diante de um mundo que também não é, e principalmente depois de tantas “surpresas” que Hollywood lhe trouxe? Ao recusar-se a jogar conforme as regras de Hollywood, sendo posteriormente internada num hospício e estuprada enquanto se encontrava em tratamento, ela é rotulada de louca. A indústria do entretenimento cria ídolos para depois destruí-los quando bem entender.
De acordo com Dalgalrrondo, o conceito de normalidade é algo de extrema controvérsia, uma vez que existem casos extremos onde logo podemos notar o que é normal e o que é patológico. Contudo, na maior parte dos casos o assunto é permeado por uma linha tênue entre normalidade/anormalidade que acaba sendo difícil estabelecer um conceito rígido, uma vez que na época em que vivemos a normalidade é um ideal a ser alcançado, ou seja, a normalidade é uma “utopia”. A sociedade constrói a ética moralmente correta e esta é considerada normal. Frances ao apresentar comportamentos fortes e rígidos diante das suas exigências, que vão de confronto com os valores estabelecidos por aquela sociedade utópica e enclausurada, reforça uma imagem apreendida pela indústria hollywoodiana como gravemente antissocial e doentia. Frances seguia o seu próprio destino e quanto a isso não há escolhas, pois a experiência e suas múltiplas imagens necessárias estão ai cobrando o seu engajamento e esperando respostas. Ela herdou um presente e uma maldição, nas quais sua única escolha é lidar com esses fenômenos de forma consciente e é exatamente esse impulso criativo que faz de Frances essa personalidade forte. Ela verdadeiramente olha-se no espelho da água e vê em primeiro lugar a sua própria imagem, correndo o risco do encontro consigo mesma. Mas como não padecer sua alma e sua psique diante de todas as tragédias que foram de encontro com sua imagem deturpada? Não se deveria procurar saber como liquidar o padecimento da alma, mas informar-se sobre o que ele significa, o que ele ensina e qual sua finalidade e sentido. É o encontro com a neurose onde temos a oportunidade de conhecer quem somos, pois não somos curados de uma neurose e sim é ela quem nos cura. O padecimento de Frances era uma tentativa da natureza psíquica de cura, e talvez, se sua mãe e aquela sociedade aprendesse que a doença contribui para a nossa saúde e que aquilo que parece neurótico e antissocial contém precisamente o verdadeiro ouro que não encontramos em outra parte senão sintomatizado no próprio corpo, as vissitudes de sua vida teriam tomado um rumo diferente.
A verdadeira loucura do homem reside dentro de si mesmo, é o próprio conflito existencial proporcionado pela cultura e pela sociedade. São os limites que a sociedade impõe ao homem que vai de encontro às suas próprias tendências. A loucura emerge para falar sobre nós, ela é a verdadeira via do que há dentro de cada um. Ela é desconexa, pois a atitude consciente não permite a sua organização e nem o vislumbramento do seu sentido verdadeiro. O que a cultura corrompe é a nossa verdadeira sanidade. Será que existe de fato alguém são nesse mundo? Frances é um retrato fiel de que a loucura e a genialidade são linhas tênues, sua armadura e sua determinação a impulsionaram a seguir seu Daimon. Em minha opinião, o patológico não está no ser diferente e sim no esforço incansável de ser normal.  
A psicopatologia dissocia a cura e a ferida, os manuais psiquiátricos apenas enfocam nos sintomas e não na etiologia, o louco é mal interpretado e raramente é ouvido. É como se o louco não tivesse nada a dizer, como se ele não fizesse parte do mundo real. O louco não é uma máquina em desordem, ele sofre dos mesmos problemas humanos que nós. Frances precisava dizer algo, era uma necessidade intrínseca à sua alma, mas ela não foi ouvida e com isso algo teria que ser “criado” para que ela fosse vista; e o que não fazia sentido, acabou tornando-se depois de sua morte um sentido existencial. A cura psicológica é interna à própria ferida; deveria ser feita uma cisão entre doença e saúde em psicopatologia, mas não é isso que observamos principalmente nos dias de hoje onde o mercado farmacológico está em alta e o importante não é apreender o sentido da doença e sim remover seus sintomas. Frances vivia numa época de depressão e confusão, a sociedade e suas instituições é que são doentes aprisionadas em seus rígidos mecanismos de defesa, na camisa de força da moralidade que cria as próprias categorias nosográficas utilizando-as como forma de normalização.  A psicopatologia possui um pecado mortal que é o seu descaso com a beleza, afinal de contas uma vida tem algo de muito belo, sua tarefa é investigar e explicar, e se um fenômeno estético aparece em algum de seus casos será explicado por uma psicologia que antes de mais nada carece de sensibilidade. O tratamento psicológico com seus coquetéis da “felicidade” e suas formas modernas de cura, não dá espaço para a apreciação estética da história de uma vida. Talvez se Frances fosse vista neste viés onde a beleza é em si mesma uma cura para o mal-estar psicológico, sua vida teria tomado um rumo totalmente diferente.




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